A importância da colher
Chegou o tão esperado fim-de-semana. Enfiam-se as crianças no carro, aperaltadas para a ocasião e enceta-se o percurso, não poucas vezes longo demais para as exigências de um simples estômago. Por fim o local escolhido: restaurante consagrado no boca em boca dos recantos de iguarias portuguesas, muito secreto, mas com uma fila que a esta hora já chega à estrada. O casal de amigos aguardava pacientemente a nossa chegada. Não têm filhos, pois é (ou já são demasiado crescidos para estas excursões em família e sabem de cor o cardápio das desculpas para escapar) que é como dizer que não têm pretexto para se atrasarem - como se a pontualidade fosse característica intrínseca dos portugueses.
Beijoqueira intensa, perguntas da ocasião, cuja resposta está previsto não ultrapassar os 150 caracteres - e entramos no restaurante. "Os miúdos, que crescidos estão desde a última vez em que os vi!", exclama a amiga. "Pois é", responde a mãe enquanto empurra os petizes para um canto da mesa - que agora é o momento para as conversas dos adultos.
Invariavelmente - a não ser que as crianças já sejam crescidinhas ou estejam muito entretidas - começa o disparate no recanto da mesa dedicado à imberbice. Os pais, chocados, asseguram os amigos de que aquele espectáculo não se costuma proporcionar em casa. Talvez não, e não foi de repente que os petizes desaprenderam toda a complexa acumulação de regras de comportamento em sociedade. Mas não podemos ignorar que os bebés nascem com a consciência de que o mundo gira em torno deles (ou pelo menos o mundo dos adultos com quem contactam) e à medida que crescem vão fazer os possíveis para que isso não deixe de funcionar assim.
"A mãe agora está entretida a falar com a amiga, mas no momento em que eu enfiar esta colher no nariz, de certeza, certezinha, que ela vai olhar para mim."
E, pasme-se... olha mesmo. O puto tinha razão, mas mais do que essa razão, porque agora a mãe prepara-se para dar-lhe algo além de atenção. Abandonemos, no entanto, esta narrativa, que não passou de um pretexto - rebuscado, eu sei - para atingirmos outra questão. O momento em que a criança começa a comer sozinha e já pode ser deixada à "sua sorte" funciona, em termos simbólicos, como a fase em ela se começa a aperceber de que os adultos não vivem exclusivamente para satisfazer as suas necessidades e se vê forçada a redimensionar a sua concepção de mundo.
Durante uma fase avançada da infância e através de uma adolescência interminável torturamo-nos com esta questão - esta espécie de abandono, que ainda se torna pior porque não nos abandonaram realmente, apenas nos sentimos assim. Cultivam-se as amizades, procura-se o protagonismo - em público ou em privado, dependendo da personalidade. Mas apenas num momento voltamos a sentir algo equiparável ao conforto do abraço absoluto materno (e paterno): quando ao projecto de amor que construíram sobre nós os nossos pais justapomos um projecto de amor a dois, com esse alguém que escolhemos para suprir uma falta inconciliável.
Nesse momento parecem os pais portar-se mal à mesa para nos chamar a atenção, mas é tarde para acenar com a colher: naquela pessoa cumprimos o sonho da individualidade humana: partilhá-la com outra pessoa cuja individualidade queremos explorar. E não é como nos filmes, e mesmo assim ainda o é. Não é, porque acumulámos demasiadas expectativas para que possam ser cumpridas em rigor. E é, porque o nosso código de comunicação amorosa, antes de se treinar e crescer com o outro, parte do que absorvemos avidamente nos romances de filmes, e de livros, e de canções. E daí (re)nasce a intimidade partilhada.
Beijoqueira intensa, perguntas da ocasião, cuja resposta está previsto não ultrapassar os 150 caracteres - e entramos no restaurante. "Os miúdos, que crescidos estão desde a última vez em que os vi!", exclama a amiga. "Pois é", responde a mãe enquanto empurra os petizes para um canto da mesa - que agora é o momento para as conversas dos adultos.
Invariavelmente - a não ser que as crianças já sejam crescidinhas ou estejam muito entretidas - começa o disparate no recanto da mesa dedicado à imberbice. Os pais, chocados, asseguram os amigos de que aquele espectáculo não se costuma proporcionar em casa. Talvez não, e não foi de repente que os petizes desaprenderam toda a complexa acumulação de regras de comportamento em sociedade. Mas não podemos ignorar que os bebés nascem com a consciência de que o mundo gira em torno deles (ou pelo menos o mundo dos adultos com quem contactam) e à medida que crescem vão fazer os possíveis para que isso não deixe de funcionar assim.
"A mãe agora está entretida a falar com a amiga, mas no momento em que eu enfiar esta colher no nariz, de certeza, certezinha, que ela vai olhar para mim."
E, pasme-se... olha mesmo. O puto tinha razão, mas mais do que essa razão, porque agora a mãe prepara-se para dar-lhe algo além de atenção. Abandonemos, no entanto, esta narrativa, que não passou de um pretexto - rebuscado, eu sei - para atingirmos outra questão. O momento em que a criança começa a comer sozinha e já pode ser deixada à "sua sorte" funciona, em termos simbólicos, como a fase em ela se começa a aperceber de que os adultos não vivem exclusivamente para satisfazer as suas necessidades e se vê forçada a redimensionar a sua concepção de mundo.
Durante uma fase avançada da infância e através de uma adolescência interminável torturamo-nos com esta questão - esta espécie de abandono, que ainda se torna pior porque não nos abandonaram realmente, apenas nos sentimos assim. Cultivam-se as amizades, procura-se o protagonismo - em público ou em privado, dependendo da personalidade. Mas apenas num momento voltamos a sentir algo equiparável ao conforto do abraço absoluto materno (e paterno): quando ao projecto de amor que construíram sobre nós os nossos pais justapomos um projecto de amor a dois, com esse alguém que escolhemos para suprir uma falta inconciliável.
Nesse momento parecem os pais portar-se mal à mesa para nos chamar a atenção, mas é tarde para acenar com a colher: naquela pessoa cumprimos o sonho da individualidade humana: partilhá-la com outra pessoa cuja individualidade queremos explorar. E não é como nos filmes, e mesmo assim ainda o é. Não é, porque acumulámos demasiadas expectativas para que possam ser cumpridas em rigor. E é, porque o nosso código de comunicação amorosa, antes de se treinar e crescer com o outro, parte do que absorvemos avidamente nos romances de filmes, e de livros, e de canções. E daí (re)nasce a intimidade partilhada.
2 Comments:
It is not the spoon that bends, it is only yourself.
By Jacquet, @ 9:37 da tarde
Better to bend than to break.
By Cátia Monteiro, @ 9:43 da manhã
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