melomanias, etc.

segunda-feira, maio 31, 2004

LER OU NÃO LER? NÃO É A QUESTÃO.

Ler, sem dúvida. Se apraz ao leitor um tipo de escrita fluída e elaborada, onde se narram episódios históricos intercalados com impressões pessoais do autor e registos autobiográficos, imbuídos de interpretação, esta obra é para si. Se prefere um registo histórico seco e exclusivamente factual dos acontecimentos, isento de opinião por parte de quem o escreve, prossiga a leitura; pode ser que mude de ideias.

Em Uma História da Leitura, Alberto Manguel proporciona-nos uma narrativa em dois planos. Estes planos, que surgem de forma intercalar ao longo da obra, materializam-se sob o formato de registo histórico dos acontecimentos, por um lado, e na sua interpretação e comentação através da experiência pessoal do próprio autor. O primeiro plano pode ser encarado como “a História da leitura”, em que viajamos no espaço e no tempo, assistindo ao desfilar de personagens que de alguma forma contribuíram para a constituição do universo literário. Aqui temos acesso a pequenos segredos, episódios fascinantes, que nos fazem sentir que só agora começamos a compreender o acto de leitura em toda a sua complexidade. Em cada um destes episódios, a voz do narrador sofre uma metamorfose e puxa-nos para um espaço mais íntimo, através de um tom confessional. Nesta segunda dimensão, toma forma um elo de ligação entre narrador e leitor, que é ainda mais aprofundado pela instância de este narrador se assumir simultaneamente como leitor, o que invoca um sentimento de cumplicidade. É assim que temos acesso àquilo que se pode designar como “uma história da leitura”, pessoal e, no entanto, partilhada, que, com uma certa ambiguidade, é única, mas universal. Única, porque é a vida do seu autor; universal, porque é também um pouco da nossa e dos outros, pelo que partilhamos em comum num ambiente de cumplicidade – a leitura.

Uma História da Leitura encontra-se dividida em quatro partes principais, sendo as segunda e terceira destas subdivididas em capítulos. A primeira parte, que ironicamente toma o nome de “A Última Página”, dando-nos a sensação de estar a ler o livro de trás para a frente, é uma porta aberta em que o autor nos convida a entrar no seu mundo. Logo neste momento introdutório ele concretiza de forma profunda em que consiste o acto de ler e qual a sua pertinência: “Todos nos lemos a nós próprios e ao mundo à nossa volta para vislumbrarmos o que somos e onde estamos. Lemos para compreender ou para começar a compreender. Não podemos deixar de ler. Ler, quase tanto como respirar, é uma das nossas funções vitais” (p.21). Transporta-nos para o mundo da sua infância, contando como decorreu a sua descoberta das letras e dos livros. Esta era também uma descoberta de histórias, com tanta importância como a vida real, que lhe permitiam viver uma vida paralela àquela em que constantemente viajava de terra em terra, sem um lar fixo. Os livros eram ao mesmo tempo evasão e refúgio, algo que permanecia imutável no espaço e no tempo, embora o sentido apreendido mudasse a cada nova leitura.

A segunda parte deste livro, denominada “Actos de Leitura” é constituída por dez capítulos, em que o processo de leitura é analisado sob as mais diversas perspectivas, tendo por base teorias, experiências, relatos, e estabelecida uma ponte para uma análise mais profunda e pessoal. Diversas especificidades da leitura, dos seus leitores e também da escrita são abordadas, desde a diferença entre a leitura silenciosa e em voz alta, aos vários tipos de escrita e suporte escrito que foram surgindo. Através destes relatos, Alberto Manguel desmistifica alguns dos aspectos que são para nós, óbvios, mas que não o eram certamente há séculos atrás. Um exemplo é a leitura silenciosa, que em tempos não era de forma alguma a usual, pelo que oportunamente o narrador nos chama a atenção para que tipo de ambiente se viveria numa biblioteca dessa altura. As imagens não são esquecidas; linguagem universal, compreensíveis mesmo por aqueles que não estão familiarizados com a alfabetização, fenómeno de resto muito restrito até há bem pouco tempo. A intertextualidade é um dos alvos de maior enfoque. Quando lemos um livro, não obstante a nossa aparente solidão, estamos rodeados por uma multidão – aqueles com quem partilhamos aquela leitura. Ler é fazer parte de uma sociedade gigantesca e infinita, tal como aqueles que nunca conhecemos pessoalmente, mas com os quais partilhamos essa experiência mística de unidade.

A terceira parte, “Poderes do Leitor”, trata a relação entre leitores e os seus livros, ao longo de outros dez capítulos. Num deles, “Os Ordenadores do Universo”, é contado um episódio delicioso, quase em tom caricatural, com que alguns leitores se podem identificar. “No século X, (...) o grão-vizir da Pérsia, Abdul Kassem Ismael, para não se separar em viagem da sua colecção de 117 000 volumes, mandou transportá-los numa caravana de quatrocentos camelos treinados para caminharem em ordem alfabética” (p.201). Uma forma no mínimo original de catalogação e transporte de uma autêntica biblioteca! O desejo de posse de um livro, a interdição sexista e racista à leitura ou a certos tipos de leitura, bem como uma série de outros tópicos não menos interessantes, servem de pretexto para relatos cómicos como este ou para outros um tanto mais amargos. Uma pluralidade que dá ainda mais valor ao produto final, uma mensagem do escritor para o leitor, uma confissão de leitor para leitor, onde cada citação se articula de forma perfeita, como se ao retirar as marcas que a identificam, esta ficasse imperceptível num todo coerente e pertinente.

Não posso deixar de referir a última parte desta obra, “Páginas de Guarda”, que se traduz numa metáfora do autor como leitor da sua obra, quando ele próprio não a havia ainda escrito. É uma espécie de exercício mental em que nos convida a imaginar a alternativa ao texto que temos em mãos, a possibilidade não concretizada. Pormenor interessante é que esta obra imaginária tem um título ligeiramente diferente, o que no entanto tem implicações profundas. O seu título é A História da Leitura, e o seu conteúdo (é-nos sugerido) infinito, abarcando todas as leituras, em todos os tempos e lugares.

Assim, Uma História da Leitura conduz-nos por lugares e tempos distantes, que se actualizam no aqui e no agora, tendo a leitura como referente sempre presente e o livro como acessório fundamental. Estas são algumas das motivações que o levam agora a si, leitor, a obter um exemplar desta obra e a saboreá-la no seu recanto secreto... Ou talvez não.

Cátia Monteiro
Dezembro 2003
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OLDIES

Mais um post para a secção de OLDIES, a provar que a escrita, bem como a leitura, é intemporal... O registo é ligeiramente (há com certeza quem o irá achar radicalmente) diferente daquele que costuma pautar este melomanias, mas isso explica-se facilmente pelo contexto em que foi produzido: uma recensão para a cadeira de Técnicas de Expressão do Português.

Em nota de rodapé, melomanias a inaugurar a sua faceta literária, uma das muitas faces deste bloco de notas virtual...