Ken Park - Quem és tu? Sou um rapaz-pretexto
Ken Park. Quem é Ken Park? Ken Park é um pretexto, apenas um ponto de partida – e de chegada – sem que isso tenha qualquer coisa de redutor. Redutora é a abordagem que foi feita pela generalidade da crítica (e embora não seja muito apologista de generalizações, não resisto a esta) na altura em que o filme estreou nas salas portuguesas. E o que me inquieta mais é que percebo agora que é uma crítica não só estandardizada, mas também importada. Que se importem os filmes, coisa natural; agora que se importem as críticas feitas aos respectivos filmes, circunstância decerto infeliz: para críticos e sobretudo para os leitores, nomeadamente aqueles leitores que “ainda” dão crédito ao que os críticos têm para dizer nas suas prosas.
Passo a explicar a razão de tanta inconformidade. Há largos meses atrás a principal questão que dividia as páginas dos jornais relativamente à obra do Larry Clark e a este filme em particular era a existência (ou não) de justificação para as cenas sexuais explícitas que surgem de forma recorrente ao longo do filme. E vai daí o Larry é obsceno, o Larry é pedófilo, o Larry é um artista, o Larry mostrou o que devia, o Larry mostrou mais do que devia e deve ter havido quem ainda considerasse que o Larry deveria ter mostrado mais do que mostrou.
Discussões deste género à parte, parece-me que com isto nos desviaram da questão central do filme, uma realidade vivida por aqueles adolescentes (e por outros), uma realidade violenta, e chocante sim, mas não pelo sexo, ou pela forma explícita como é mostrado. Chocante pelo que a família deveria ser (e não apenas representar) e não é. Ali e em muitas vidas. Chocante pela violência com que o sentimento de poder (e até posse) paternal é levado ao extremo, ou em antítese negligenciado esse papel de forma igualmente dura para quem espera ter na família o seu apoio.
Talvez resida nesta película algum voyeurismo, mas quem sou eu para definir o que é o objecto do voyeur? Não poderá ser a violência igual motivo de atracção voyeurística? Porque há-de o sexo de ser maior tabu do que a violência? E, paradoxo dos paradoxos, porque há-de a explicitude com que é mostrado o sexo ser contestada enquanto a violência passa despercebida? Não podemos ver uma ejaculação, mas umas facadas nos nossos avós já não parecem tão mal... Pelo menos não o suficiente para fazermos delas o mote da crítica.
Pode ser que tudo isto se resuma a uma questão: o que é gratuito. Mas afinal o que é gratuito? O sexo mostrado em Ken Park é gratuito? A violência mostrada em Ken Park é gratuita? A decadência moral evidenciada em Ken Park é gratuita? Parece-me a mim que a realidade responde por si, sem necessidade de recurso a falsos moralismos, quando mais aqueles importados do mesmo país de onde vem o filme e com base nos quais foi feita uma pequena introdução justificativa (e que considero dispensável, mas pelos vistos há quem não o ache e está em maioria). Os argumentos são ardilosos. Mas maior ardil é deixar-se levar pela corrente do que parece bem e perpetuar questões que não fazem mais do que esconder os (outros) verdadeiros motivos de indignação.
O sexo em Ken Park não se justifica pela moral, justifica-se pelas relações que são estabelecidas entre as pessoas. A violência em Ken Park não se justifica pela moral, até porque a violência por si não tem justificação possível. Por isso dispenso moralismos importados, até porque quando muito acabam somente por alimentar a impressão de caracteres numa perspectiva sensacionalista e por dar visibilidade – e rentabilidade – ao filme por motivos que não se tornam tão evidentes depois da ida ao cinema.
Cátia Monteiro
2004-03-30
Passo a explicar a razão de tanta inconformidade. Há largos meses atrás a principal questão que dividia as páginas dos jornais relativamente à obra do Larry Clark e a este filme em particular era a existência (ou não) de justificação para as cenas sexuais explícitas que surgem de forma recorrente ao longo do filme. E vai daí o Larry é obsceno, o Larry é pedófilo, o Larry é um artista, o Larry mostrou o que devia, o Larry mostrou mais do que devia e deve ter havido quem ainda considerasse que o Larry deveria ter mostrado mais do que mostrou.
Discussões deste género à parte, parece-me que com isto nos desviaram da questão central do filme, uma realidade vivida por aqueles adolescentes (e por outros), uma realidade violenta, e chocante sim, mas não pelo sexo, ou pela forma explícita como é mostrado. Chocante pelo que a família deveria ser (e não apenas representar) e não é. Ali e em muitas vidas. Chocante pela violência com que o sentimento de poder (e até posse) paternal é levado ao extremo, ou em antítese negligenciado esse papel de forma igualmente dura para quem espera ter na família o seu apoio.
Talvez resida nesta película algum voyeurismo, mas quem sou eu para definir o que é o objecto do voyeur? Não poderá ser a violência igual motivo de atracção voyeurística? Porque há-de o sexo de ser maior tabu do que a violência? E, paradoxo dos paradoxos, porque há-de a explicitude com que é mostrado o sexo ser contestada enquanto a violência passa despercebida? Não podemos ver uma ejaculação, mas umas facadas nos nossos avós já não parecem tão mal... Pelo menos não o suficiente para fazermos delas o mote da crítica.
Pode ser que tudo isto se resuma a uma questão: o que é gratuito. Mas afinal o que é gratuito? O sexo mostrado em Ken Park é gratuito? A violência mostrada em Ken Park é gratuita? A decadência moral evidenciada em Ken Park é gratuita? Parece-me a mim que a realidade responde por si, sem necessidade de recurso a falsos moralismos, quando mais aqueles importados do mesmo país de onde vem o filme e com base nos quais foi feita uma pequena introdução justificativa (e que considero dispensável, mas pelos vistos há quem não o ache e está em maioria). Os argumentos são ardilosos. Mas maior ardil é deixar-se levar pela corrente do que parece bem e perpetuar questões que não fazem mais do que esconder os (outros) verdadeiros motivos de indignação.
O sexo em Ken Park não se justifica pela moral, justifica-se pelas relações que são estabelecidas entre as pessoas. A violência em Ken Park não se justifica pela moral, até porque a violência por si não tem justificação possível. Por isso dispenso moralismos importados, até porque quando muito acabam somente por alimentar a impressão de caracteres numa perspectiva sensacionalista e por dar visibilidade – e rentabilidade – ao filme por motivos que não se tornam tão evidentes depois da ida ao cinema.
Cátia Monteiro
2004-03-30